segunda-feira, 29 de junho de 2009

Yo Soy María.

“I hate these days of white hazy lights that shyly shine slendering through the clouds
And I hate the stage as much as Night,
Who lies on the soft lawn to tell me she lies, her lies;
But they sound so pure”


Começo aqui a escrever um livro provindo de outro livro provindo doutro livro cujo autor diz que ‘livros não provêm de outros livros’. Começa aqui o penúltimo épico brasileiro. Aqueles livros eu nunca li; estes são os meus dizeres:

Era noite em Buenos Aires. Era a Noite de Buenos Aires que me fazia mal. A Noite vem com tal facilidade crepuscular que parece assediar os vagabundos, os criminosos de adultérios, os recatos, católicos de monastério. Atravessa a Cisplatina pé ante pé como fosse seu quarto (atravessara, de fato, de cama em cama, quarto em quarto; nenhum seu), o corredor, o céu do leste ao oeste, as amarras de um navio e ela o gatuno hábil. Ela era mesmo autora de ladroagens abstratas reconhecida pelos devidos conselhos e ministérios. Por fazer-lo fácil: personagens não se inventa. Personagens não se inventam. Observa-se, ou rouba-se (anotar a observação já é roubar da realidade); empresta de tomado e desenvolve-se em prosa cantada. María de Buenos Aires, então, já existia havia cinquenta anos, porém desde então jaz aos vinte e sete, e nós que discorremos sobre tais tipos somos tão gatunos quanto ela. Perto de Machado ou Saramago, sou só um trombadinha de Ipanema.

ela altura de Porto Alegre num trevo da BR-116 María pedia carona, María vendia carinho. Quem fora Régis Bittencourt Maria não o sabia. María fazia erres de jotas e esses entremeados em palavras quando dizia que ‘le gustaría llegar a San Paulo’, mas María, ah, María se encantara com a vista da descida da Rodovia Anchieta, quem não se encanta afinal quando vê São Vicente tão de longe, mas não sabia que maior ainda seria seu espanto quando visse Santos bem de perto. Nos arredores da Consolação Dr. Haddock Lobo disse à jovencita María que toda aquela Paulista que por ali se estende e separa os pinheiros da sé não se daria ali, se não soprasse o vento marinho serra acima; se não se tivesse feito daquele mangue insular aterro desterro desespero e monotonia, uma Liverpool subtropical. Ali María também vira, oh María(,) vira que era mesmo María Noctem, María pasión fatal, assombrando as graças e espantando as honras de freis e senhoras da boa-venturança. Maria era puta que tinha glamour e daí cunhava o prazer daí dos boas de pluma da saia curta e preta da calcinha de rendas brancas e transparentes das botas frias de colocar dos salto e bico finos que tanto incomodavam até as mentes mais sãs até o senhor mais careca com a camisa de gola e manga curta mais xadrez e a calça mais social mais marrom e mais vincada ostentando o bigode de escovinha desproporcional ao tamanho de sua pança até este arnaldo botelho contador formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo desencostava os lábios um do outro um pouco um tiquinho que fosse quando pela manhã escondia os Classificados da Folha de São Paulo dentro do caderno Mundo depois de entregar o Caderno 2 à filha séria de dezessete anos, séria demais pra quem tem dezessete anos inclusive, e então percorria com os olhos a sessão que todos percorrem só por curiosidade só para encontrar Marina de boca pequena e carnuda pele macia e estatura miúda e que faz tudo com o rabo farto e depois empalidecer suar comprimir de novo, os lábios, cobrava cento e oitenta reais, e largar, o jornal. Abocanhava então a torrada como fosse Marina, carnuda, em gozo. María se deliciava ao deleite dos outros e com o deleite dos outros, mas o seu gozo era só seu. E ela não queria nem saber.

María não era triste nem feliz, não se dizia pela expressão. Levava o rosto um pouco abaixado e o fazia duro, suas sobrancelhas retas; o olhar por baixo por cima, de lado, nunca no eixo e os lábios nas suas ranhuras estavam sempre segurando algo que eu não saberia dizer se era uma palavra indizível um verso tão medonho uma palavra de amor (que acabaria com o seu negócio – uma reflexão do ócio) uma vontade de fumar todavia era somente sua língua de liquidificador.

Até agora falei muito e pouco disse: a partir de agora direi nada e tudo falará por si só; pois foi sem uma palavra precedente que María me olhou diminuiu reduziu à infinita pequenez e fez do meu corpo página em branco, e eu fiz do seu montanha inatingível, como é de costume entre as pessoas da minha idade. Aqui eu passo da onisciência à compreensão da minha ignorância sobre a história imparcial sobre a assentimentalidade sobre seu oposto sobre tudo que não for meu e até o que é meu e eu não conheço.

María de certo era uma mulher daquelas que andavam com uma faca a tiracolo, amarrada na coxa larga embaixo da saia ou na bolsa; agora chamavam-na de Marina, Pois que Maria é nome de santa, dizia, mas quando a descobri puta com nome de santa, bom, só isso mesmo conseguiu me converter à fé cristã. Quando Marina punha o pé na soleira, já era dia, e dava descanso à faca num móvel velho de sala, olhava o decote no espelho, essa era María Rojas, singela, e seu gozo era só seu. María arrancava a indumentária e a parafernália que lhe desconfortavam e agora descalça (nua) sentava num sofá de almofadas rotas, e, trazendo de encontro ao lugar mais frequentado da região um violão, desabava em lamentos espanhóis que seu avô lhe ensinara. María não conseguia largar-se de todo do pesado, do passado. Dançava conforme a música: pela noite ser leve, mudava de nome, esquecia o sotaque, o sobrenome e as roupas; já no dia, pesado, cantava os prados da Argentina e as esquinas de Madrid. Dormia nunca. Eu, de memória curta, enrolado em pesadas cortinas que cheiravam a mofo e àquilo que cheiram as pernas e os peitos de María, sincronizava a minha respiração com os soluços de María enquanto tentava hablar con las luces que disseram que la olvidaría. No olvidé. Jamás.

Um comentário:

cameron disse...

esse lucas ai mó sem graça